Um centenário | Há 100 anos, o mundo conhecia “O Gabinete do Dr. Caligari”, em 1920

Faz hoje um século do lançamento original de “O Gabinete do Dr. Caligari’, lançado em 1920. E o filme continua sendo um marco histórico do cinema mudo e no desenvolvimento de si, como um todo.
Entre as obras-primas mais discutidas de todos os tempos, o clássico de Robert Wiene, que estreou em Berlim em 26 de fevereiro de 1920, já era considerado “o primeiro filme de terror verdadeiro” (por nada menos que um grande crítico americano, Roger Ebert).
O filme também foi anunciado como dos pioneiros em tom mais artístico no cinema, ajudando-o a ser levado a sério e mais respeitado como uma forma de arte, propriamente.
Como Paul Rotha disse uma vez, Caligari foi para as telas prateadas “como uma gota de vinho em um oceano de água salgada”. Aqui, examinamos algumas das razões por trás do impacto devastador do filme.
O Expressionismo alemão e sua importância

Expressionismo foi um movimento artístico e cultural alemão, surgido no século XX, em 1912. Presente nas mais diversas formas de expressão artística, esteve presente em pinturas através de paletas cromáticas vincadas e agressivas e de ênfase às temáticas da solidão e de miséria.
Tal movimento é um reflexo da angústia e ansiedade que dominavam os círculos artísticos e intelectuais da Alemanha durante os anos anteriores à Primeira Guerra Mundial (1914–1918), e no cinema, posteriormente, em filmes como os clássicos “Da Manhã à Meia-Noite” (1920), e os belíssimos “Nosferatu” (1922), “As Mãos de Orlac” (1924), “O Homem Que Ri” (1928) e “M, O Vampiro de Dusseldorf” (1931).
O movimento foi essencial e imprescindível no pós-Guerra da Alemanha, e na forma como as artes foram um dos principais vetores na responsabilidade em trazer à tona, de volta, uma sociedade ainda machucada que, precisamente naquele momento, submergia de um conflito profundo, e crise complexa (e antes de outra guerra que ainda viria).
E essa (entre outras) é uma das grandes responsabilidades e funções do cinema em sua mais bela expressão de artes no gênero terror — e no todo: Em tempos de crise, levantar questionamentos, reerguer o imaginário, e trazer ao centro do questionamento e à reflexão aquilo que há de pior no ser humano… e o que há de melhor em seu âmago, em suas representações.
Um filme conturbado sobre uma sociedade num momento conturbado.
Um filme que capturou o espírito de seu tempo
Depois de enfrentar uma derrota humilhante nas mãos de seus inimigos durante a Primeira Guerra Mundial, a Alemanha sofreu uma crise econômica sem precedentes, provocada pelos custos da guerra e pelos pagamentos de reparação exigentes exigidos pelas potências aliadas.
O país, devastado pelas mortes e desfiguramentos de seus soldados, caiu em uma depressão profunda pós-guerra — um mal-estar que foi perfeitamente capturado visualmente pelos tons escuros e sombrios de Caligari, e toda sua conotação mais séria e trágica.
O filme é protagonizado por Franzis (Friedrich Fehér), um estudante numa pequena cidade alemã, cujo amigo é vítima de um serial killer sonâmbulo, Cesare (Conrad Veidt), mata sob o domínio de um artista de feira e hipnotizador local, Caligari. (Werner Krauss).
Como disse o produtor do filme, Erich Pommer: “A atmosfera misteriosa e macabra do Grand Guignol estava atualmente em voga nos filmes alemães, e essa história se encaixava perfeitamente”.

Para um país ainda obscurecido pelas sombras da guerra, as mortes na tela não podiam nunca deixar de rememorar às do campo de batalha, e os críticos posteriores apontariam para Cesare como um substituto dos bravos jovens soldados que foram enviados à lutar, matar ou morrer à pedido de um governo insensível e inumano.
Ainda assim, com o fim da guerra, os territórios internacionais começaram a suspender suas restrições na exibição de filmes alemães, e Caligari se beneficiou do momento fortuito de seu lançamento. Além disso, filmes anteriores, como “O Golem” (1915), tiveram todas as referências às suas origens alemãs removidas quando tocavam em países aliados como a América.
Como tal, Caligari, um filme alemão identificável, tornou-se um pioneiro para a indústria alemã como um todo.
Ele se baseou nas artes populares
Se a história de Caligari estivesse imbuída da turbulência emocional da época, seu estilo visual iria além, rompendo radicalmente a realidade e criando um mundo claro-escuro de ângulos contorcidos e bordas pontiagudas. Imensamente inovador e influente, o expressionismo cenográfico, vinculado ao estúdio, destacou Caligari como um filme de ‘arte’, além de vinculá-lo a um movimento popular da época — dando assim ao filme um forte apelo comercial.
Na época em que Caligari foi criado, o Expressionismo — que busca apresentar o mundo externo como experimentado por emoções subjetivas e internas — era um movimento artístico bem estabelecido, abrangendo pintura, literatura, arquitetura, música e teatro.
Estava muito em voga nos círculos artísticos contemporâneos, sendo frequentemente usado por artistas para expressar o descontentamento e a depressão da sociedade pós-guerra.

A decisão de usar o estilo para Caligari foi motivada tanto por razões econômicas quanto artísticas, com o chefe de produção Rudolf Meinert sustentando que o estilo experimental causaria uma sensação entre o público, independentemente de como fosse recebido pela imprensa. Caligari não foi o primeiro filme a fazer uso do expressionismo, mas foi um dos primeiros a usá-lo de uma maneira tão abrangente.
Os principais atores do filme, Werner Krauss (Caligari) e Conrad Veidt (Cesare), haviam trabalhado sob o lendário empresário expressionista Max Reinhardt, e seus movimentos, juntamente com os de outros atores, fundindo-se com cenários para formar padrões geométricos — uma fusão perfeita de design expressionista:
O sentimento de desconforto e pavor incutido pelas imagens distorcidas de Caligari teria uma enorme influência não apenas no cinema de Weimar, mas também nas gerações futuras de cineastas de terror.
Tinha uma estrutura inovadora e ambígua
A narrativa central de Caligari é cercada por uma trama: em um banco, Franzis narra suas aventuras, apenas para que mais tarde seja revelado algo interessante no final. Visto dessa maneira, o visual estilizado do filme se justificava com visões delirantes, pensamentos e consciência — o mais puro Expressionismo.
E entre alguns teóricos, deles notadamente Siegfried Kracauer, vieram as maiores críticas sobre a história do filme, alegando que subvertia a mensagem anti-autoritária do filme, estabelecendo Caligari como uma figura de autoridade e reduzindo todo o contexto a um mero delírio.
Eu pessoalmente (ninguém precisa concordar comigo) sempre fiz um paralelo entre o perverso e diabólico Caligari e o próprio Adolf Hitler, a verdadeira personificação do mal, e que no oportunismo certo, puxaria os cordames e insurgiria a Alemanha no epicentro de uma nova guerra mundial.
Ironicamente, o filme advertia, 19 anos antes de sua ascendência e a do nazismo sob o contexto de domínio mundial, tornando a ideia de uma raça ariana superior, subjugando e exterminando seus diferentes… tal qual um hipnotizador e seu objeto de obediência.
O golpe duplo da reviravolta dramática e a profunda incerteza dessa sequência final são certamente um dos muitos fatores que contribuem para o poder fascinante de Caligari e o tornam um filme fascinante, misterioso e ressonante, mesmo 100 anos depois.

Texto original: Bfi.org (texto com adaptação — removendo spoilers ao máximo, enriquecendo detalhes, dados, e com aprimoramento do texto); artes de cartazes: Tradebit e Etsy. Trailer original: https://www.youtube.com/watch?v=gkPdvRontMc
PUBLICAÇÃO ORIGINALMENTE POSTADA: 26/02/2020 em nosso blogue